Parem de chamar um assassino de goleiro

Como um caso de feminicídio se transformou em um erro individual de um “pobre homem arrependido”

Letícia
4 min readMar 19, 2017
Eliza Samudio, uma entre tantas mulheres vítimas de feminicídio no Brasil

Eu tinha 13 anos quando o assassinato da modelo paranaense Eliza Samudio aconteceu em 2010. Muito se ouvia a respeito, o caso passou no Fantástico e em vários outros programas de TV, mas em nenhum momento eu ouvi as palavras “machismo” e “feminicídio” serem associadas a ele.

A Letícia de 13 anos não conseguiria relacionar um caso de assassinato com uma pauta feminista, ou muito menos imaginar que esse era só um dos casos de violência que acontece todos os dias com nós mulheres. A Letícia de 13 anos reproduzia o que a mídia falava sobre o assunto, sem questionar quem estava decidindo como essa história seria contada.

Spoiler: a Letícia de 20 anos questiona.

O mocinho arrependido

Revista Placar dando espaço para a redenção de Bruno ao invés de tentar mudar a realidade dos casos de feminicídio.

10 anos depois, e o caso do assassinato volta a ser comentado na mídia quando Bruno Fernandes de Souza — sim eu sei é chocante saber que o primeiro nome do assassino não é “goleiro” — é liberado após ter cumprindo apenas 6 anos da sua sentença. E, de novo a mídia fala do crime de forma individualista, sem abordar o problema estrutural da violência contra a mulher.

O caso que os jornais contam agora é um mais “bonito” e convincente do que antes: 6 anos depois do seu julgamento, Bruno seria um homem mudado, arrependido, que gostaria de voltar a jogar futebol (aliás, conseguiu porque quem liga que você mata mulheres quando você sabe jogar bola, não é mesmo?) e ser ressocializado na sociedade após “cumprir” sua pena. Parece lindo, poderia ser história de filme de Hollywood ou de um bestseller — e quem sabe daqui a pouco não vai ser? eu não duvidaria.

Não vou entrar no mérito jurídico de questionar se ele deveria ou não ter sido liberado, pois não tenho conhecimento para isso. O meu problema com ele ter sido solto, além do fato de isso significar um risco para outras mulheres na sociedade, é a forma como a mídia tem mostrado isso. Afinal, como estudante de comunicação social, mulher e feminista, não é nem um pouco surpreendente saber que a mídia brasileira está cagando para a violência contra a mulher, mas não deixa de ser um tapa na cara ver entrevista atrás de entrevista tentando redimir o que o cara fez, ignorando o fato de milhões de homens fazerem igual todos os anos. Ou pior ainda, ser acusada de ser “punitivista” por companheiros misóginos de esquerda que nem ao menos tentam entender como esse caso afeta nós mulheres (a maravilhosa Soraia da Rosa Mendes falou sobre isso aqui).

De quem é o protagonismo?

Uma das coisas que mais me chamou atenção em toda a cobertura midiática de 2017 tem sido o foco no próprio Bruno e não no feminicídio que ele cometeu. Na entrevista da Folha de São Paulo, por exemplo, ele se referiu ao assassinato como “uma coisa que aconteceu”, sem nem mesmo mencionar o nome de Eliza. Isso só mostra que mesmo quando o caso de violência acontece com nós mulheres, o protagonismo e o foco da história continua sendo dos homens. Ou nesse caso, de um homem em particular, porque esse era rico e famoso obviamente.

Os veículos de comunicação poderiam estar utilizando essa história para falar sobre violência contra mulher, sobre a necessidade das discussões de gênero, sobre feminismo e masculinidade tóxica. Mas eles não fazem isso, pois não tem interesse em mudar a realidade que nós mulheres vivemos, e sim assegurar os privilégios masculinos dos homens. Isso não é coincidência, não é descuido, não é só jornalismo ruim, é jornalismo sendo usado para um propósito bem claro.

Com excessão de veículos feministas e de esquerda, poucos falam sobre o motivo real de Eliza ter sido assassinada, poucos mostram outros casos de violência parecidos para mostrar como o feminicídio não é um caso isolado, e sim um reflexo da dominação masculina. A maioria se foca na narrativa individual, seja para condenar ou redimir as ações de Bruno.

Qual é o perigo dessa narrativa?

Lembra quando eu falei que a Letícia de 13 anos não questionava o que a mídia falava? Essa é a realidade da maioria dos brasileiros. O brasileiro comum é bombardeado pelas informações da mídia hegemônica e constrói as suas opiniões através dela e da sua vivência.

E no final, quem pode culpá-lo por começar a sentir empatia por Bruno quando a mídia cria uma história tão convincente? (claro que a culpa não é só da mídia, mas vamos levar em consideração que a pessoa que consome a mídia está inserida em uma sociedade patriarcal e misógina, e a mídia está colaborando para manter a sociedade assim)

Dessa forma, quando retratamos um caso de feminicídio como uma história de um homem arrependido que quer voltar a jogar futebol, estamos colaborando para que casos como esse voltem a acontecer. Quando nos focamos na vida do Bruno, e não na morte de Eliza, estamos literalmente dizendo que a redenção de um único homem é mais importante do que a violência sofrida por milhões de mulheres todos os dias. E isso é perigoso para nós mulheres, porque mesmo que o leitor veja a entrevista e pense que Bruno é um “monstro” que devia estar na cadeia, ele não vai parar pra pensar nos milhões de Brunos que existem por ai, consequentemente continuaremos correndo o risco de sermos Eliza amanhã.

Porque no fim do dia, ele é “goleiro”, ele é “mocinho”, ele é “monstro”, ele é “arrependido”, ele é “celebridade”, tudo continua sendo sobre ele enquanto ela é só mais uma estatística.

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Letícia

26 anos / Mestranda em Comunicação na Universidade de Coimbra / Feminista radical